03/05/2010

O Jihad de cada um.



Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.

Entre as representações do Islã construídas pela mídia ocidental e largamente difundida está a idéia do jihad como uma das cinco obrigações do crente (pilares da fé islâmica). Jornalistas mal informados e até mesmo “orientalistas” (especialistas que são tidos como conhecedores do mundo árabe-islâmico) relacionam "o esforço no caminho de Allah" - esta é a tradução mais próxima da palavra jihad - às ações terroristas de grupos como a Al-Qaeda e a opinião pública generaliza a atuação de grupos extremistas como algo determinante no islamismo. O fundamentalismo militante, que também existe entre os judeus e os cristãos, representa uma interpretação simplista e manipulada das religiões às quais esses grupos procuram se associar. Suas origens são bastante complexas e estão relacionadas ao colonialismo, a busca por identificação cultural, à pobreza e à ignorância, além dos conflitos políticos. De forma geral, entretanto, o objetivo do fundamentalismo religioso é sempre o mesmo: a implantação de um tipo específico de totalitarismo, contrário à essência de justiça e igualdade comum as três grandes religiões monoteístas.

Usada pela primeira vez no contexto dos preparativos que a comunidade muçulmana, em Medina, fazia para se defender das ameaças dos habitantes de Meca e dos beduínos do deserto, a convocação do Profeta Muhammad (que a paz e a benção de Allah estejam com ele) para o jihad assumiu a conotação imediata de "guerra santa". Ao escolher esta e não outra palavra - para expressar apenas o significado de luta armada, a língua no árabe tem os termos harb (guerra), sira'a (combate), ma'araka (batalha) - o Profeta referia-se a "um esforço físico, moral, espiritual e intelectual" em defesa da fé, não circunscrito àquele episódio, mas extensivo às práticas da comunidade e a formação individual dos muçulmanos. Um hadith (tradição) mostra que Muhammad (s.a.s), ao voltar de uma batalha, declarou: "Nós voltamos do jihad menor para o jihad maior". Ou seja, depois da luta contra os inimigos externos, há o esforço bem mais difícil de derrotar o mal e a descrença que existem dentro do coração de cada um.

As obrigações do crente, resumidas nos cinco pilares da fé islâmica, sinalizam esse esforço. Elas não incluem o jihad. A primeira é a profissão de fé (shahada), mediante a qual o crente reconhece que "Não há divindade a não ser Allah e Muhammad é o seu enviado", atesta sua confiança e sua submissão ao Único e Todo Poderoso (a shahada contêm duas partes: a primeira, comum a todas as religiões monoteístas; a segunda, especifica para os muçulmanos). O segundo pilar da fé é a prece (salat), pela qual se busca a orientação de Allah. O terceiro, a purificação dos bens (zakat), através de doações voluntárias para os necessitados ou obras meritórias, ato que não suprime a recomendação de dar esmolas (sadaga) e inclui, por extensão, à proibição da usura ou de outros lucros ilícitos à custa da comunidade. O jejum (siyyam) do mês de Ramadan, durante o qual se celebra o início das revelações do Alcorão e exercita-se o sentimento coletivo de proximidade com Allah, é o quarto pilar. O quinto é a peregrinação (hajj) a Meca, uma jornada física ao centro mundial da fé islâmica, de profundas conotações místicas para todos os crentes.

Os Pilares do Islã testemunham, em primeiro lugar, a Unicidade de Allah e a necessidade da submissão humana à Sua justiça. Eles atestam que os fiéis devem espelhar como indivíduos uma ínfima parte que seja, um pálido reflexo da luz e dos atributos divinos: à Unicidade de Allah corresponde à necessidade de concórdia entre os homens; à Justiça divina, as relações de igualdade social; a Misericórdia do Clemente, à responsabilidade para com os menos favorecidos... Prescritos pelo Profeta aos poucos e como elos unificantes da fé e da comunidade muçulmana que se formava, os Pilares contêm uma dimensão social. O Islã prega não apenas a edificação moral do indivíduo, mas também a construção de uma sociedade justa, decente e livre de opressões. Dentro dessa perspectiva, um muçulmano vê a militância política como algo que não contraria a religião.

O que parece estranho, ao cristianismo atual, é o Islã aceitar a possibilidade da "guerra justa". O Alcorão admite - sem hipocrisias - que a força, muitas vezes, é necessária à defesa do bem: "Se Allah não derrotasse os homens, uns pelos outros, a terra ficaria corrompida. Deus é generoso para com os mundos" (Sura 2:251). Essa admissão, entretanto, obriga o muçulmano a uma outra regra: a busca pelo fim rápido das hostilidades e pela reconciliação. Também está escrito que "se eles se inclinarem para a paz, inclina-te para ela também e confia em Deus. Ele ouve tudo e sabe tudo" (Sura 8:61), além da proibição registrada em várias passagens corânicas de agir contra àqueles que não atacam, não são eles mesmos os agressores nem ameaçam aos muçulmanos nem a fé islâmica. No ano de 627, quando Meca e seus aliados foram derrotados, Muhammad (s.a.s) preferiu a paz ao justiciamento dos não muçulmanos. A reconciliação quase lhe custou à confiança dos seus companheiros. Além disso, a agressividade é condenável e os mansos é que são chamados, no Alcorão, de "servos do Clemente" (Sura 25:63).

A evidência de que "o esforço no caminho de Deus" não pode ser expresso em atos terroristas, como querem os ideólogos do fundamentalismo islâmico, está no não atendimento em massa da convocação feita por Osama Bin Laden, no Afeganistão ou no Iraque. A maioria dos muçulmanos, entre árabes e não árabes têm consciência de quanto às ações e o ideário dos grupos terroristas estão longe do Islã. O significado original do jihad está relacionado à conquista da liberdade, a derrota do mal e dos opressores. Sem relação com agressões aos civis inocentes, destruição de propriedades e matanças indiscriminadas.


Carlos Peixoto

Jornalista

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